sexta-feira, 22 de julho de 2011

Um esforço além... da violência

Ficamos pensando no fato de Realengo e na constante polemização da midia, desde um massacre à penaltis perdidos numa partida de futebol. Deixamos assim de discutir questões para além dos fatos. O texto abaixo é de autoria de Lucia Rabello de Castro (Professora Titular, Instituto de Psicologia, UFRJ Núcleo de Pesquisa sobre Infancia e Adolescencia Contemporaneas NIPIAC/UFRJ) e nos propõe um esforço interesante:

Um esforço além... da violência

A tragédia que se abateu sobre a Escola Tasso da Silveira no Rio de Janeiro deixa-nos a todos perplexos em busca de uma alguma compreensão possível para o horror: a execução de crianças, a violência, o ódio, o pavor, a humilhação, a crueldade. Aprisionados pela comoção da dor, nos agarramos àquilo que pode desemaranhar rapidamente o nó que nos prende ao sofrimento. Por que aconteceu? O que levou Wellington Menezes de Oliveira ao ato de loucura de matar inocentes, e tirar sua própria vida? Há um clamor para que perguntas como essas sejam respondidas de alguma forma; sobretudo porque na ausência de uma explicação continuamos agoniados, atormentados, mal podendo voltar para a vida e a seus afazeres. Como voltar para a vida, se a morte, aberrante, apareceu tão imprevisível tirando o chão debaixo dos pés?
A cada tragédia na cidade, um repertório de explicações pretendem  dar conta sumariamente da violência que nos atinge no dia a dia. No afã de identificar as causas do mal que apodrece lentamente nossa convivência na cidade as explicações dos crimes e da violência tende, frequentemente, a separar nitidamente o mal do bem. Uma das maneiras de faze-lo é, sem dúvida, dar corpo e nome à maldade, personificando-a. Desta maneira, pode-se dizer que a violência é resultado de uma mente perversa, de um ou de muitos. Por este expediente, aparentemente tão razoável, deixamos rapidamente de lado o trabalho de buscar mais profundamente, com mais demora (e também mais sofrimento!) outras compreensões sobre a violência que nos atinge.
Por isso mesmo muitos já afirmaram e muitos outros parecem crer que Wellington teria problemas mentais, ou estava obcecado, fanatizado por alguma seita. Fixar toda explicação desta tragédia apenas nas motivações mais profundas deste rapaz conduz a torna-la mais facilmente esquecível uma vez que o enigma da violência fica rapidamente equacionado. Aí, fica mais fácil voltar à rotina até que outra monstruosidade nos atropele novamente.
A dor do vizinho as vezes instrui mais do que a própria dor. Morando por um curto período de tempo na India, tenho me deparado com a violência desta sociedade que também deixa escaras profundas e perplexidade. Antes de 1947, ao longo da primeira metade do século XX, o movimento nacionalista na India lutou para se livrar do jugo britânico, que por durante dois séculos ou mais esfolou e escravizou os indianos. Foram muitas as frentes de luta, uma das mais importantes a liderada por Ghandiji quem preconizava a resistência ativa e corajosa, mas sem violência. Desde sua independência do jugo colonial em 1947 até recentemente, esse país esteve convulsionado por lutas sangrentas, genocídios, matanças cruéis e abomináveis. Parece que tudo se torna motivo para disparar a violência, desde a demolição de um lugar sagrado, como uma mesquita, até um simples jogar no outro um punhado de pó colorido, como é costume se fazer na festa hindu chamada Holi. De cada lado, se opõem facções, sejam religiosas (hindu, sikh, jain, muçulmana, e outras), mas também grupos 2 sociais de castas diversas. O ódio não segue um único divisor de águas mas corre transversalmente às religiões, castas e etnias. Gujarat, estado no norte da India, sofreu em 2002 um dos mais escabrosos surtos de violência, desta vez opondo hindus e muçulmanos. Saques, estupros, assassinatos com requintes hediondos de crueldade, e o que é pior, desta vez, com total conivência do aparato do estado, que se aliou a violência contra os muçulmanos. A violência se reitera e parece não recuar (desde 2002 vários outros surtos aconteceram) a ponto de um celebrado intelectual indiano, Dispesh Chakravarty, dizer que a vida pública na India está dominada pela violência política das massas.
No entanto, o que parece diferente aqui é o esforço imenso para sustentar a discussão desta questão sem dissolve-la numa resposta definitiva. Os episódios de violência são discutidos na mídia, na academia, pelos ativistas, e outros grupos, nos mais diversos espaços públicos, já existentes, ou criados para esse fim. Mesmo que, muitas vezes, haja uma tentativa de simplificação da questão fixando a violência nas motivações religiosas, fazendo crer que essa seria a única razão de tanto ódio, se interpõem outros esforços que resgatam a complexidade da própria questão religiosa, uma vez que ela está atravessada pela questão da pobreza, da casta e, até mesmo, das solidariedades locais. Assim, a religião não é o único elemento que pode explicar o massacre, quando, indo mais além, se constata que até o poder político – do governo, da polícia – também está imiscuído na agressão. Constata-se, também, como ocorreu em muitos episódios desencadeados por um fato religioso, que eles podem ser remetidos a injustiças sociais e opressões de longa data que acumularam decepção e revolta, e muitas vezes o aspecto religioso se torna apenas o disparador da insatisfação contida. Com tudo isso, pode-se sentir que há um investimento enorme para compreender a violência que suscita um repertório de idéias que parece não se fechar. O que é importante é que as idéias vão tendo oportunidade de circular amplamente nos vários segmentos da sociedade, e algumas delas vão tomando mais corpo, adquirindo mais plausibilidade, ensejando uma compreensão mais clarividente. Ou seja, aos poucos, lentamente, alguma luz se faz em torno da questão.
Sem dúvida, a violência toma formas e sentidos diferentes a partir das condições da história e da cultura onde ocorre, portanto, a violência no Brasil assume características bem diversas da violência na sociedade indiana. Temos que, como brasileiros, dar conta do mal que nos aflige.
A tragédia da E.M. Tasso da Silveira pode parecer um fato isolado, um ato de violência desencadeado por desequilíbrio mental de um indivíduo. Por outro lado, podemos também encadea-la com acontecimentos trágicos que vem se somando e se repetindo com alunos e professores em escolas públicas. No Rio de Janeiro as escolas públicas vem sendo alvo de inúmeras violências, que cotidianamente irrompem nas suas rotinas: balas perdidas, assaltos, ameaças de traficantes, tiroteios cruzados... Em 2010, é bom recordar, um aluno morreu na sala de aula, vítima da violência de confrontos entre polícia e traficantes perto do local da escola. É custoso imaginar como em muitas escolas ainda se consegue ensinar em contexto tão adverso. A isso se somam ainda, a situação de penúria institucional das escolas, os baixos salários, a assustadora evasão do quadro do magistério estadual. Essas condições de injustiça tem sido recorrentemente denunciadas pelos próprios professores. Frequentemente circulam cartas de professores que denunciam as agressões entre alunos, ou por parte deles, que 3 também, por sua vez, se sentem injustiçados porque faltam professores nas escolas, eles sentem dificuldades nos estudos sem ter a quem recorrer, e, frequentemente, se dão conta de que a educação que recebem está longe de prepara-los para a vida e para o trabalho. Enfim, se somam injustiças com mais e mais injustiças.
Nesta configuração de violências a quem estão submetidos alunos e professores, acumulam-se insatisfações. Parece que estamos diante de uma situação que está à beira de um abismo. Lamentavelmente, a questão da educação pública não tem atraído os debates e a discussão na proporção da gravidade da situação que assistimos, e nem da importância que este assunto deveria ter para todos nós. As notícias de acontecimentos como o da E.M. Tasso da Silveira levam apenas a algumas poucas semanas de rastreamento bombástico da personalização do crime sem desvelar o que acontece nas escolas, com seus alunos e professores, e as inúmeras injustiças e violências que vicejam entre os muros da escola. Por outro lado, dada a dificuldade de coletivizarmos nossas aflições e agruras, não parece fácil a tarefa de se criarem espaços de discussão sobre a educação pública, uma vez que, também, esse debate conta com a indiferença das elites deste país.
Neste quadro, é importante examinar como os governos tem respondido a tal situação de violência disseminada, de injustiças e de revolta nas escolas públicas. Alguns planos e propostas visam melhorar as condições de ensino mas mantem intocadas as reivindicações dos próprios professores, tais como expressas por meio de seu sindicato. Em vez disso, gratificações, bônus, recompensas financeiras são acenadas para aqueles que cumprirem metas e engrossarem as estatísticas de boa gestão escolar. As reformas, ainda que bem intencionadas, são colocadas de cima para baixo sem a discussão e participação exaustiva e paciente com os próprios atores, professores e alunos, quem, afinal, sabem melhor do que os gestores o quê lhes falta. Os salários são mantidos na faixa da indignidade e da humilhação. O que fazer na situação de tiroteios na escola? Um plano para ensinar os professores’a se defender e defender os alunos!... Além disso, constata-se a violência policial contra as manifestações públicas dos professores quando esses vão às ruas reivindicar melhores condições de trabalho.
A violência em Realengo é um fato raro, e neste sentido pode parecer isolado. No entanto, ele parece um fio solto que se desamarrou de um novelo emaranhado de violências sufocadas que brotam nas salas de aula das escolas públicas. Esta pode ser uma linha de discussão que tenhamos que enfrentar e aprofundar caso queiramos compreender melhor possíveis meandros da violência na sociedade brasileira.

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